segunda-feira, 17 de setembro de 2012

A PUNIÇÃO DE LUISÃO


Uma vez que em regra os órgãos disciplinares da FPF não tornam públicas as suas decisões de carácter sancionatório, não se sabe com todo o rigor quais os factos dados como provados na decisão do Conselho de Disciplina, secção não profissional, que puniu Luisão.
Todavia, os factos mais relevantes foram-se tornando públicos ao longo dos dias e constam ainda das imagens televisivas e dos diversos vídeos que daquelas se fizeram. Em consequência, já li duas opiniões sobre o caso, as quais são de presumir estarem somente baseadas nos factos de todos mais ou menos conhecidos, em virtude daquele citado não publicitamento público.
Uma dessas opiniões escritas advém de um indivíduo a quem a trunfa de caracóis mais ou menos o ilumina nas suas palpitações e devaneios e que, segundo creio, de formação jurídica tem a que é comum dos mortais.
A outra foi produzida por um profissional de direito, um Juiz Desembargador.  

Luisão foi punido por uma infracção disciplinar que os julgadores classificaram de agressão.
O primeiro opinante citado acha correcta a subsunção dos factos àquele tipo de infracção.
O segundo não considera líquida tal tipificação.
O Senhor Juiz Desembargador defende que não e chama à colação a ausência nítida de dolo na actuação de Luisão.
Não sabemos quais as razões do voto de vencido de um dos julgadores mas é de presumir com certo grau de probabilidade que ele se insurgiu, ou contra a tipificação do comportamento de Luisão como agressão, ou contra a qualificação do grau de culpa, ou contra ambas.

Outro pormenor importante a salientar e que já vi escrito em dois blogues é o de colocar em dicotomia pura ilicitude/culpa, quando se afirma, por exemplo, que Luisão nunca deveria ter sido castigado com o “enquadramento de agressão ou tentativa de agressão” e sim com o “enquadramento de comportamento negligente ou comportamento anti-desportivo”, ou ainda quando se afirma que o conselheiro que votou contra o fez “porque achou que devia ter sido enquadrado em acto de negligência e não no de agressão”.
Ora, uma coisa é a classificação da infração, o acto ilícito praticado, outra, o grau de culpa com que actua o agente que comete tal acto.
Percebe-se a confusão ou a falta de clareza na distinção porque, de acordo com os princípios gerais de direito, em especial os consagrados no Código Penal, e com o sentimento comum generalizado na sociedade, o termo agressão está associado a um ofensa à integridade física já de alguma gravidade e esta exige em regra o dolo para assim poder ser punida.

Todavia, o que está intimamente ligado à culpa – dolo ou negligência – não é a ilicitude do facto mas a punição dessa ilicitude.
De acordo com o Código Penal, “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
Nos sistemas sancionatórios disciplinares ou contravencionais, a exigência do dolo para efeitos de punição é mais mitigada uma vez que o facto ilícito praticado por negligência é quase sempre punido e não apenas excepcionalmente.



O artigo 17º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional considera infracção disciplinar «o facto voluntário, por acção ou omissão, ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável».
Em vários artigos se refere a agressão mas não nos é dado o seu conceito concreto e distintivo. A agressão é um tipo de infracção disciplinar o que, de resto, não suscita quaisquer dúvidas. Mas um tipo de infracção disciplinar muito grave e que deve exigir, por isso, o dolo para ser sancionada.

Mas qual será a noção de agressão?
Será que os factos apurados podem tipificar uma agressão?
Estas, para além do grau da culpa – dolo ou negligência – as questões essenciais, a meu ver e que não sei como foram tratadas no acórdão. 



Não me parece que o facto cometido por Luisão tenha sido praticado com dolo. Ninguém de boa-fé pode acreditar que Luisão representou o derrube do árbitro, ou como consequência directa, ou necessária, ou eventual do seu comportamento.
Mas já tenho por adquirido que ele foi negligente, ao menos porque não actuou com a diligência que deve ser exigida ao homem médio no cumprimento dos seus deveres.



A noção de agressão, não estando conceptualizada no regulamento disciplinar em análise, insere-se nos princípios gerais de direito sancionatório, em especial no criminal.
Adverte-se que este direito penal não lhe chama agressão mas ofensa à integridade física.
“Ofensa à integridade física” que se consubstancia numa ofensa ao corpo ou à saúde.
Ofensa ao corpo é, segundo a doutrina, toda a alteração da integridade corporal e ofensa à saúde é toda a alteração do normal funcionamento do organismo.
Pode dizer-se, grosso modo, que aquela consiste numa alteração morfológica, esta numa alteração fisiológica.

A lei penal exige em regra o dolo para que a ofensa à integridade física possa ser punida.
A ofensa à integridade física cometida por negligência também está prevista na mesma lei, em norma distinta, específica, sendo vista com muito menor gravidade, de tal modo que o julgador até pode isentar de pena o infractor.
Porém, pelo sentimento generalizado, jurídico ou do homem comum, quando se fala em agressão está a pressupor-se que se trata de uma ofensa à integridade física já de certa gravidade. O legislador penal foi sensível a esse entendimento e, por isso, exigiu o dolo como elemento da culpa.
O Senhor Juiz Desembargador vai até mais longe, exigindo o dolo directo que é a modalidade de dolo mais grave. “Intencionalidade directa”, escreve ele.
Acrescente-se, apenas por mera curiosidade, que o ignorante encaracolado também admite expressamente a inexistência do dolo na actuação de Luisão. Ele, bacoco, coloca em tese que, se «os relatórios médicos tivessem identificado uma lesão grave do árbitro…»!
O tolo ou não viu, ou não quis ver, que tais relatórios nem identificaram “lesão grave”, nem identificaram “lesão não grave”!
Como concluiremos infra, eles não identificaram lesão nenhuma!   



Analisemos então os factos conhecidos e relevantes.

Vimos pelas imagens televisivas e pelo relatório do árbitro, noticiado pelos meios de comunicação, que houve um choque, embate ou encosto entre árbitro e Luisão, um incidente mutuamente provocado porque ambos se encontravam em movimento, sem prejuízo de ter sido Luisão a dirigir-se no sentido da trajectória do árbitro.
O árbitro não classifica de agressão o choque, embate ou encosto.
Porque o Luisão é muito mais encorpado e se deslocava a velocidade superior, a consequência natural foi a queda do árbitro.
Mas esse choque, embate ou encosto, e consequente queda do árbitro, provocou neste ofensa ao corpo ou à saúde?

O relatório do hospital alemão diz, de importante para a compreensão desta questão, que o árbitro «se dirigiu à clínica na própria viatura, consciente, sem tonturas ou vómitos, não lhe sendo diagnosticado falhas neurológicas ou lesões exteriores. Perante um quadro clínico que não suscitava apreensões, o árbitro prescindiu do internamento estacionário e assinou, inclusive, o termo de responsabilidade.
Christian Fischer regressou à clínica no dia seguinte, queixando-se de dores na área torácica esquerda, onde foi detectada uma escoriação de 2x2 cm de coloração hemática, mas não foi detectada dor provocada pela compressão do tórax, nem queixas a nível respiratório.
Ao 3º dia, a coloração tornou-se azul mas os exames torácicos, de RX às costelas e o TAC ao crânio nada detectaram. Ao juiz foram detectadas lesões pré-existentes e não relacionadas com o incidente».

O parecer do neurologista Dr. António Martins diz que, «na análise do quadro evidenciado na queda e no período subsequente à mesma não resulta evidência clínica da perda de conhecimento do sr. Fischer».

Quer o relatório, quer o parecer do neurologista, são baseados em factos medicamente qualificados e nenhum deles assinala qualquer alteração da integridade corporal ou do normal funcionamento do organismo.
O relatório do hospital relata a existência de uma escoriação de 2x2 cm mas que só foi detectada no dia seguinte. No próprio dia do jogo, tal escoriação não foi observada pois, diz-se aí, «não lhe sendo diagnosticado lesões exteriores».
Por conseguinte, não sendo verosímil que o relatório esteja a mentir, só pode concluir-se que essa escoriação foi provocada posteriormente ao incidente.
Seja como for, não parece curial, face ao relatório médico do hospital, estabelecer uma relação de causalidade adequada entre o choque e consequente queda do árbitro e aquela escoriação.

Perante este quadro, não parece lícito, repete-se, estabelecer-se que do choque e consequente queda do árbitro tenha resultado qualquer alteração da integridade corporal do árbitro, qualquer ofensa ao seu corpo. Não foi detectada qualquer lesão exterior ou interior da sua integridade física, através de observação, RX, TAC ou manipulação.
E igualmente não resulta daí qualquer alteração ao normal funcionamento do organismo do mesmo árbitro, ou seja, qualquer ofensa à sua saúde. Não foram detectadas “falhas neurológicas”, “tonturas”, “vómitos”, “dor”, “queixas a nível respiratório”, seja através de sintomas observáveis externamente, seja através daqueles meios auxiliares de diagnóstico realizados também com esse objectivo.
Consequentemente, é-me difícil concluir que tenha havido qualquer ofensa à integridade física do árbitro provocada pela acção do Luisão.

Admito que Luisão, com o seu comportamento, cometeu uma outra infracção disciplinar, nomeadamente a prevista e punida pelo artigo 166, alínea a), “protesto ou comportamento incorrecto contra a equipa de arbitragem” – sanção de repreensão – ou, quando muito, a infracção prevista e punida no artigo 157º, alínea a), “utilização de expressões ou prática de gestos ameaçadores ou reveladores de indignidade … dirigidos contra equipa de arbitragem” – 1 a 4 jogos de suspensão e multa.

Dificilmente consigo admitir, perante o quadro factual de acção e suas consequências, que essa infracção disciplinar possa ser tipificada como de agressão.
Pelos relatórios médicos conclui-se que não houve qualquer ofensa à integridade física do árbitro.
Com o seu comportamento, Luisão não causou qualquer ofensa ao corpo ou à saúde deste mesmo árbitro, ofensa essencial à tipificação do facto como agressão.

3 comentários:

  1. Faço ainda uma outra pergunta. Pois tal não me pareceu claro no que li.

    Existe ou não existe um relator que propõe ao plenário do CD a tipificação do acto sendo posteriormente decidida a pena a aplicar pelos conselheiros?

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  2. Meu caro "nunomaf"

    Nestes casos de decisões tomadas sempre por mais do que um julgador, é sempre sorteado ou nomeado um deles para ser o relator. É esse que analisa os factos dados como provados, verifica da sua ilicitude - contrariedade com a lei - que os subsume às leis que os regem, que analisa o grau de culpa do agente e as correspondentes sanções, tudo com justificação de direito e de facto.
    Ou seja, escreve a (proposta de) decisão.
    Depois, distribui cópias pelos outros julgadores que dirão de suas razões. Poderão votar a decisão vencidos, poderão votar a favor mas com algumas alterações no enquadramento dos factos, no grau de culpa, etc.
    A decisão que vier a ter vencimento torna-se de todos os que votam a favor.
    Nem todas as decisões de órgãos julgadores colectivos são plenário no sentido de que terão de ser todos os elementos que compõem o órgão a decidir. Pode ser apenas um certo número.
    Saudações Benfiquistas

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