segunda-feira, 21 de setembro de 2020

ALUCINAÇÕES - O apagão não engana

 

ALUCINAÇÕES

 

Depois da comoção nacional em torno da comissão de honra de Luís Filipe Vieira, foi importante a pressão mediática e popular para a aplicação do mesmo critério ao Sporting e ao Porto, tendo sido relevante a saída do procurador da República João Palma dos órgãos de Alvalade e as saídas dos presidentes de câmara do Porto e de Gaia e dos deputados do conselho superior do dragão, a par da saída da irmã do presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira – Rita Moreira –, da administração da SAD dos dragões. Aplicar o critério era isto. Afinal, foi só delírio.

O apagão não engana

Qual é o critério para, nos Panama Papers, divulgar de pronto os nomes dos alegados políticos envolvidos e, mais de quatro anos depois, continuar a não se saber os nomes dos jornalistas avençados pelo saco azul do GES/BES?

Num Estado de direito democrático, a lei deveria ser o essencial do critério de ação e a sua aplicação ser uma operação linear, mas não. O que se constata, sob o ponto de vista dos cidadãos, é que o exercício de deveres acaba por ser simples e linear, mas a sustentação dos direitos enfrenta múltiplas dificuldades, sendo tudo menos objetiva e previsível.

Basta ver o que acontece com o pagamento de impostos ao Estado e o que se passa na órbita da administração da justiça – a linearidade da tributação e o labirinto de arbítrio, de imprevisibilidade e de inconsistência da justiça.

 

Simbolicamente, a justiça pode apresentar-se cega, mas há muito que está dotada de GPS e de calendários que lhe tolhem o normal funcionamento, levando-a para caminhos e soluções divergentes com o perfil de um Estado de direito democrático.

Em demasiadas ocasiões, ninguém percebe o critério aplicado para a investigação, o rationale das decisões e o sentido comunitário de alegadamente se querer aplicar uma visão da lei e de o não fazer a outros.

A insegurança em relação a um dos pilares maiores da vivência comunitária instalou-se e é alimentada diariamente por contradições, promiscuidades entre o sistema de justiça e os media e incompreensões.

É, no fundo, o resultado de uma degradação geral da administração da justiça, no conteúdo, no tempo e no sentido, em que o Presidente da República e os políticos bem podem elogiar os resultados, mas não iludem a miserável realidade concreta.

Os políticos geraram um sistema de privilégio e de ausência de escrutínio da administração da justiça que deu margem para a criação de um modelo em que o arbítrio, os interesses e a falta de senso imperam. E de pouco valerá quererem fazer da Operação Lex um exemplo, quando o sistema está cheio de distorções graves e com as quais os políticos e os participantes na administração da justiça convivem, sem qualquer esboço de indignação ou contestação.

 

O facto de haver juízes suspeitos na Operação Lex aparenta ser mais um exercício de foguetório para que o resto fique na mesma, num momento em que se assiste, por exemplo, ao branqueamento pelo sistema de investigação judicial do pirata informático Rui Pinto, só porque, à margem da lei, fez o que alguma justiça gostaria de poder fazer: conseguir, na órbita digital, ter uma intervenção sem critério, à margem da lei, que lhe permita atingir determinados fins sem olhar a meios.

Ter o diretor nacional da PJ a abonar um criminoso digital é isso. É a consagração da intenção de prosseguir uma justiça no plano digital sem critério, sem olhar a meios e com um foco preguiçoso da obtenção de provas – provas para alimentar os preconceitos, as narrativas e o arbítrio, não para dar expressão a exercícios de um verdadeiro Estado de direito democrático.

 

Mas qual é o critério?

Para, nos Panama Papers, divulgar de pronto os nomes dos alegados políticos envolvidos e, mais de quatro anos depois, continuar a não divulgar os nomes dos jornalistas avençados pelo saco azul do GES/BES, alguns presumivelmente a comentar a atualidade noticiosa com alta pose de autoridade moral?

Para, no caso BES, ver ficar de fora da acusação personalidades que gravitaram na órbita de Ricardo Salgado, que terão tido tanto conhecimento e participação na sua gestão e nos desmandos, uma delas só porque é companhia do Presidente da República, ele próprio participante e usufrutuário de benesses da personagem central do enredo?

Para, no caso Lex, Álvaro Sobrinho, ex-presidente do BES Angola, acionista do grupo Impresa e do Sporting Clube de Portugal, ter ficado de fora da órbita das acusações depois de ter sido profusamente enunciado pelos media como sendo suspeito de corromper o juiz Rui Rangel?

Este monumental apagão do Ministério Público acontece por que razão?

Com que sentido?

 

 

Poderiam ser mais, mas são apenas três exemplos que ninguém compreende. Quem conheça um pouco do funcionamento da justiça e da sociedade portuguesa não pode deixar de se indignar com a ausência de critério na ação da justiça, que investiga uns e se conluia com outros, acusa uns e apaga outros, condena na praça pública e iliba outros nas omissões, num bailado de efetiva inconsistência, promiscuidade e impunidade que constitui um dos maiores atentados ao Estado de direito democrático.

 

Neste contexto, com os apagões e os branqueamentos em curso, a acusação a Luís Filipe Vieira no âmbito do processo Lex pretende ser apenas uma cortina de fumo para a gravidade de tudo o resto, da administração da justiça ao apagão de Álvaro Sobrinho da acusação.

Ou será normal que o fisco se aproprie de 1 milhão de euros de alguém e só ao fim de oito anos é que esse alguém consegue que um tribunal reconheça que o Estado não agiu bem e lhe devolva o dinheiro que era seu?

É que oito anos são 10% de uma vida. Coisa pouca.

 

Infelizmente, este como outros apagões não enganam. Vivemos num contexto de incertezas em que as intermitências do Estado de direito democrático dão espaço a uma perigosa incerteza que nada tem a ver com o cumprimento da lei, basta que o arbítrio de alguém do sistema queira e o cidadão torna-se o alvo. Mesmo que faça o que outros fazem, mesmo que tenha direitos, mesmo que tudo, basta sair na rifa.

E isso não deveria ser o critério nem quatro décadas de democracia deviam permiti-lo. 
Enfim, os apagões não enganam.
(António Galambra, in Jornal i, 21/09/2020. Arranjos de configuração próprios)



segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A ÉTICA QUANDO DÁ JEITO

 

Por que se indigna o jornalista da SIC José Gomes Ferreira com a presença do primeiro-ministro na Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira e nada disse sobre a sua participação em iniciativas do BES em estâncias de esqui enquanto jornalista de economia no ativo? 

(texto de António Galamba, 14/09/2020)



Para que fique claro, sou benfiquista e apoio a reeleição de Luís Filipe Vieira como Presidente do Sport Lisboa e Benfica. Não exerço cargos públicos há 9 anos e partidários há 6 anos, mas se os desempenhasse em nada alteraria as razões da participação, porque nada tolheria os critérios de pensamento e de ação em funções públicas.

 

Em Portugal instituiu-se que a ética da República é o que está na Lei do Estado de Direito Democrático, em que as subversões mediáticas e as geometrias variáveis dos interesses fazem com que cada vez mais sejam colocados em causa os direitos, liberdades e garantias.

Demasiadas vezes se verificam situações de duvidosa legalidade, de manifesta falta de senso ou de nebulosa aparência que são ignoradas ou conformadas pela anuência pública, por contraste com outras que são geradoras de indignação e comoção quase nacional. Estas são o momento da emergência dos moralistas da República, que nos entretantos sossegam com parte dos acontecimentos e indignam-se com outros, sem que seja inteligível o quadro legal ou o critério aplicado para fundamentar a diferenciação.

 

Por que se indigna o jornalista da SIC José Gomes Ferreira com a presença do primeiro-ministro na Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira e nada disse sobre a sua participação em iniciativas do BES em estâncias de esqui enquanto jornalista de economia no ativo?

Ou sobre a lista dos jornalistas avençados pelo saco azul do GES que o grupo Impresa e a classe jornalística protege para que não se saibam quais os nomes dos que recebiam dinheiro de Ricardo Salgado enquanto nos “informavam” sobre a atualidade económica?

Por que se crispam tantos que nada disseram sobre as listas do Conselho Superior do FC Porto ou dos órgãos do Sporting Clube de Portugal, com autarcas e protagonistas do sistema judicial, sobre as nebulosas da ação governativa da atualidade e do passado ou até sobre as proximidades do atual e do anterior Presidente da República ao universo bancário problemático?

Por que se agitam alguns com tantos telhados de vidro que a memória traz à liça como se pudessem ser curadores de uma ética, de uma exigência e de um senso que não praticaram em momento próprio, como é bom de lembrar ao Bloco de Esquerda com o caso Ricardo Robles e a tantos outros que, tendo falado, poderiam ser avivados da memória das suas ações e proximidades com o histórico de quase três décadas de acompanhamento da atualidade?

 

A resposta é simples.

Porque é o Benfica e é Luís Filipe Vieira.

Porque é arguido, dizem.

Sim, como centenas de portugueses com funções públicas, quantas vezes condenados nas notícias plantadas na imprensa pela promiscuidade entre a justiça e os media e absolvidos em julgamento.

 

Em Portugal, num Estado de Direito Democrático, a presunção de inocência deixou de existir. É uma ficção, atropelada pela violação do segredo de justiça.

Uma justiça que faz alardo da sua ação na investigação seletiva de situações em função de dinâmicas que escapam aos princípios do Estado de Direito Democrático.

É assim que surgem alvos preferenciais e outros são negligenciados ou que, em momentos chave surgem impulsos orientados para determinados fins.

Em geral, com eleições autárquicas em 2021, entrámos na fase das denúncias anónimas orientadas para as Autarquias Locais e para os seus protagonistas. O padrão de anos anteriores, de instrumentalização da justiça, diz-nos que as ditas anónimas são enviadas agora para gerar ações, buscas e afins durante o primeiro semestre de 2021.

É assim que funciona. Há demasiados calendários e entorses a tolher a justiça em Portugal.

 

Os entorses são tão claros que alguns parecem não ter percebido o essencial. O foco em Luís Filipe Vieira é só o pretexto para chegar ao Benfica, não mudaria com qualquer mudança de protagonistas, porque o que está mesmo em causa é o que foi construído ao longo das últimas décadas e o que foi conseguido no campo desportivo. O que está em causa é o Benfica e a força institucional que tem na sociedade portuguesa e no mundo.

É lamentável constatar a adesão de alguns benfiquistas a esse impulso de que “os fins justificam todos os meios”, incorporando o argumentário alheio e exercitando uma alegada autoridade moral sem nexo com o seu perfil e com a atuação.

 

Agora que parte da justiça deposita parte do Estado de Direito Democrático nas mãos de um pirata informático, a quem alguns media dão guarida com “achismos” e outros vasculhos, ninguém acha estranho que os impulsos justicialistas não tenham suscitado o altruísta furto equitativo da correspondência de 10 anos dos três grandes?

Claro que não, era pedir demais ao sistema paralelo que agentes do sistema judicial parecem querer validar e incorporar no Estado de Direito Democrático.

Foi só o Benfica. Os fins justificam todos os meios, até ter o mesmo advogado do impoluto Michel Platini, apeado da UEFA por suspeitas de corrupção, e outras excentricidades.

 

Há muito que defendo e procuro praticar uma ética além do estabelecido na República, mas em Portugal, nada é valorizado. Nem a ética da República vertida na lei, nem as visões mais exigentes desse sentido de ética republicana. Por exemplo, como Governador Civil de Lisboa, tendo residência nas Caldas e estando a viver na casa de um familiar em Lisboa, prescindi de um subsídio mensal de cerca de 500 euros a que tinha direito. Fi-lo por uma questão de acréscimo de exigência ética.

 

Uma sociedade que se conformou com tanta coisa que se passa e passou, com promiscuidades, distorções e entorses, não pode querer despertar para a vida só porque é Luís Filipe Vieira e o Benfica. São importantes, mas não são o centro do mundo.

E a ética não pode ser brandida só quando dá jeito, logo por quem tem telhados de vidro, por ação e por omissão. Há muito que a parcialidade, discriminação e populismo em relação ao Sport Lisboa e Benfica se projetou para o domínio do assalto ao acervo construído, que é da órbita dos sócios, das Casas do Benfica e das estruturas da instituição.

 

Quanto à ética se é para ser, que seja para todos e em todos os momentos, sem alegados moralistas com reiteradas marquises e telhados de vidro.

 

 

AS CURVAS DA COERÊNCIA

(Título de Gil Vicente)