sexta-feira, 29 de março de 2019

O FEDELHO A OESTE DE PECOS e CATÃO MORREU DE VELHO


De repente ficámos a saber que na pacata Budapeste, escondido numa empena qualquer, vivendo a pão e água, um fedelho de cabelo espetado como um ouriço-cacheiro foçava em milhões de documentos privados e na que deveria ser sagrada correspondência alheia com o denodo de uma Madame Curie a cavar na pechblenda até descobrir o rádio. Por um destes milagres que só a suprema humanidade é capaz de destrinçar, o fedelho atribuiu a si próprio aquilo que um mero curso de polícia lhe podia ter dado. Alguma voz divina e encantatória lhe ordenou que salvasse este país, que é o que o mar não quer, como dizia Ruy Belo, das tranquibérnias por entre as quais sempre viveu. Imagino-o, solitário, tremendo de frio nos húmidos invernos à beira do Danúbio, sacrificando as dioptrias nessa tarefa suprema de se transformar num super-homem do justicialismo barato.



Criminoso confesso e orgulhoso (palavras do próprio), o fedelho do cabelo de ouriço-cacheiro não desperdiçou os seus cinco fatais minutos de fama para desancar no sistema de justiça em Portugal e revelar o pavor que sente pelo facto de ter sido obrigado a trocar a obscuridade de uma água-furtada de Budapeste pela vivacidade da Lisboa chiadesca. Pesa-lhe sobre os ombros a sombra de um assassínio, diz no seu português entaramelado que, assim à primeira vista, parece esconder um raciocínio caliginoso.

 E há quem vá, alegre como garotos num campo de gipsofila, de estandarte ao ombro, como manda a classe operária, atrás deste novo Pinto de um futebol que continua a chocar Pintos, alguns tão macabros e mazombos que nos espinafram a paciência durante décadas a fio com os seus zurros de azémolas.

Estamos à beira do crime dos crimes: utilizar o crime para combater o crime.

A lei a oeste de Pecos, como diria o juiz Roy Bean.

Para mim, o rapaz do cabelo de ouriço-cacheiro não é um paladino corajoso e desinteressado.

É um malandrim desinteressante.







De vez em quando, tenho uma irresistível tendência para supor.

Ora bem, num destes mais recentes ataques de suposição supus que me tinham oferecido dinheiro (vá lá, cem mil euros...) para matar alguém, ou para o deixar em coma, já não me recordo.

Como não tenho curso de anestesista, não sei como condenar uma pessoa ao coma sem correr o risco de a matar, mas a culpa é minha: tivesse estudado.

Confesso que tenho tanta tendência para o homicídio como para receber cem mil euros: nunca passei por nenhuma dessas experiências. Não é que a verba não desse jeito, mas teria de recusar a oferta por manifesta incompetência no ofício de liquidar terceiros.

Suponho, como supus, que, por uma questão de solidariedade entre seres vivos, sejam de que raça forem, mesmo que não simpatizasse com a suposta vítima do meu suposto ato, tentaria de alguma forma avisá-la de que podia estar por pouco.

Recusando eu os cem mil euros, outro os aceitaria de bom grado logo a seguir, continuo eu a supor.

Suponho que, no Portugal de hoje, se alguém receber uma proposta deste género tem duas opções: ou dirigir-se ao Ministério Público ou aos estúdios da CMTV, o que, vendo bem, vai dar quase ao mesmo, já que o que entra pela porta do Ministério Público costuma sair pelas janelas da CMTV nas 24 horas seguintes.

No meio de toda este ataque de suposições infrenes, veio-me à memória Catão, Catão o Velho, o pertinaz advogado que no Senado da Roma Antiga repetia até ao exagero da contumácia que as Guerras Púnicas só teriam fim com a destruição da inimiga Cartago. “Carthago delenda est!”

A antiga Roma era dada a assassinatos por dá cá aquela palha e não consta que fosse preciso desembolsar verbas exageradas. Catão o Velho morreu dessa sua tão peculiar característica: a velhice.
Lá está, se alguém está a pensar oferecer-me cem mil euros para matar outrem, o mais provável é que a minha putativa vítima também! 

(textos de Afonso Melo, in "Jornal I", de 27/03/2019 e 28/03/2019)

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