De
repente
ficámos a saber que na pacata Budapeste, escondido numa empena qualquer,
vivendo a pão e água, um fedelho de cabelo espetado como um ouriço-cacheiro
foçava em milhões de documentos privados e na que deveria ser sagrada
correspondência alheia com o denodo de uma Madame Curie a cavar na pechblenda
até descobrir o rádio. Por um destes milagres que só a suprema humanidade é
capaz de destrinçar, o fedelho atribuiu a si próprio aquilo que um mero curso
de polícia lhe podia ter dado. Alguma voz divina e encantatória lhe ordenou que
salvasse este país, que é o que o mar não quer, como dizia Ruy Belo, das tranquibérnias
por entre as quais sempre viveu. Imagino-o, solitário, tremendo de frio nos
húmidos invernos à beira do Danúbio, sacrificando as dioptrias nessa tarefa
suprema de se transformar num super-homem do justicialismo barato.
Criminoso confesso e orgulhoso
(palavras do próprio), o fedelho do cabelo de ouriço-cacheiro não desperdiçou
os seus cinco fatais minutos de fama para desancar no sistema de justiça em
Portugal e revelar o pavor que sente pelo facto de ter sido obrigado a trocar a
obscuridade de uma água-furtada de Budapeste pela vivacidade da Lisboa
chiadesca. Pesa-lhe sobre os ombros a sombra de um assassínio, diz no seu
português entaramelado que, assim à primeira vista, parece esconder um
raciocínio caliginoso.
E há quem vá, alegre como garotos num campo de
gipsofila, de estandarte ao ombro, como manda a classe operária, atrás deste
novo Pinto de um futebol que continua a chocar Pintos, alguns tão macabros e
mazombos que nos espinafram a paciência durante décadas a fio com os seus
zurros de azémolas.
Estamos à beira do crime dos
crimes: utilizar o crime para combater o crime.
A lei a oeste de Pecos, como diria
o juiz Roy Bean.
Para mim, o rapaz do cabelo de
ouriço-cacheiro não é um paladino corajoso e desinteressado.
É um malandrim desinteressante.
Ora bem, num destes mais recentes ataques de suposição supus
que me tinham oferecido dinheiro (vá lá, cem mil euros...) para matar alguém,
ou para o deixar em coma, já não me recordo.
Como não tenho curso de anestesista, não sei como condenar
uma pessoa ao coma sem correr o risco de a matar, mas a culpa é minha: tivesse
estudado.
Confesso que tenho tanta tendência para o homicídio como para
receber cem mil euros: nunca passei por nenhuma dessas experiências. Não é que
a verba não desse jeito, mas teria de recusar a oferta por manifesta
incompetência no ofício de liquidar terceiros.
Suponho, como supus, que, por uma questão de solidariedade
entre seres vivos, sejam de que raça forem, mesmo que não simpatizasse com a
suposta vítima do meu suposto ato, tentaria de alguma forma avisá-la de que
podia estar por pouco.
Recusando eu os cem mil euros, outro os aceitaria de bom
grado logo a seguir, continuo eu a supor.
Suponho que, no Portugal de hoje, se alguém receber uma
proposta deste género tem duas opções: ou dirigir-se ao Ministério Público ou
aos estúdios da CMTV, o que, vendo bem, vai dar quase ao mesmo, já que o que
entra pela porta do Ministério Público costuma sair pelas janelas da CMTV nas
24 horas seguintes.
No meio de toda este ataque de suposições infrenes, veio-me à
memória Catão, Catão o Velho, o pertinaz advogado que no Senado da Roma Antiga
repetia até ao exagero da contumácia que as Guerras Púnicas só teriam fim com a
destruição da inimiga Cartago. “Carthago delenda est!”
A antiga Roma era dada a assassinatos por dá cá aquela palha
e não consta que fosse preciso desembolsar verbas exageradas. Catão o Velho
morreu dessa sua tão peculiar característica: a velhice.
Lá
está, se alguém está a pensar oferecer-me cem mil euros para matar outrem, o
mais provável é que a minha putativa vítima também! (textos de Afonso Melo, in "Jornal I", de 27/03/2019 e 28/03/2019)
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